Um guia para o nadador português - Asma e alergias no nadador

2021-05-08

Um guia para o nadador português - Asma e alergias no nadador

Este é um excerto do capítulo "Asma e alergias no nadador" que escrevi para o livro UM GUIA PARA O NADADOR PORTUGUÊS

O exercício físico regular e a prática desportiva são considerados componentes importantes de uma vida saudável e recomendados para todos os indivíduos. Comparativamente aos indivíduos inactivos, as crianças e jovens activos apresentam níveis mais elevados de resistência cardio-respiratória (1). A natação, devido à prática em ambiente quente e húmido, tem sido particularmente preferida como actividade física nos países ocidentais. No entanto, os indivíduos alérgicos enfrentam desafios especiais para tentarem gerir as suas patologias durante a prática de desporto. O exercício e a exposição ao ambiente das piscinas são desencadeantes frequentes de sintomas alérgicos que prejudicam o desempenho desportivo dos nadadores.
Durante as últimas duas décadas a questão da asma e alergia entre atletas de alta competição tem captado cada vez mais a atenção não só dos médicos, mas também do público em geral, facto que se deve a um reconhecimento da sua elevada prevalência. Estes são problemas significativos para atletas de alta-competição, que têm um risco aumentado de asma e doenças alérgicas comparando com não-atletas (2). Por exemplo, a asma induzida pelo exercício é actualmente a condição crónica mais frequente entre os atletas olímpicos (3)! Estas situações acometem principalmente os que participam em desportos de alta endurance, como natação. Esta é, de facto, a modalidade desportiva com maior prevalência de asma! Num questionário realizado recentemente a 68 nadadores de um clube português, observou-se que 30% dos atletas referiam alergias, 13% tinham asma, 24% rinite, e apesar de 9% referir o uso de medicação de alívio para a asma, apenas 5% usava medicação preventiva regularmente.
Os principais problemas alérgicos relacionados com o desporto incluem, além da asma, também a rinite, a urticária induzida pelo exercício e a anafilaxia induzida pelo exercício (dependente ou não da ingestão alimentar). Vamos abordar estas quatro patologias, porque o diagnóstico é essencial uma vez que a asma e as alergias têm forte impacto negativo na performance do desportista e o início de medicação apropriada para a asma, rinite ou vacinas para as alergias, permitem o retomar de uma actividade em pleno e sem limitações. Frequentemente observa-se, após instituição terapêutica, uma progressão na carreira desportiva e não raras vezes estes desportistas batem mesmo alguns records!

ASMA INDUZIDA PELO EXERCÍCIO
O exercício é um conhecido estímulo físico capaz de desencadear obstrução das vias aéreas e consequentes sintomas respiratórios. A contracção dos brônquios (ou broncoconstrição) induzida pelo exercício define-se como o aumento transitório da resistência das vias aéreas que ocorre após esforço físico; quando tal manifestação ocorre em indivíduos com asma, designa-se asma induzida pelo exercício. Um estudo recente concluiu que os atletas de alta competição apresentam dois tipos diferentes de asma: a da infância, tipicamente alérgica, e outra que de desenvolve durante a carreira desportiva e causada pelo desporto. A exposição a condições ambientais específicas durante o treino e competição associa-se a um risco aumentado de desenvolver o tipo de “asma do desporto”: os nadadores e atletas de desportos de inverno têm maior risco de ter este tipo de asma (4). Nestes casos, os sintomas vão agravando ao longo da carreira, e melhoram quando cessa a actividade desportiva de competição (5).
É de notar que no caso dos atletas de alta-competição, o diagnóstico é na maior parte das vezes um desafio clínico, porque ao contrário de outros doentes, nesta população as queixas e os sintomas são quase ausentes ou muito ligeiros, sendo raras as crises graves de asma como habitualmente as conhecemos e os sintomas após o exercício podem passar facilmente despercebidos. Por outro lado, sintomas ligeiros são frequentemente desvalorizados mesmo pelo próprio atleta, que os interpreta como normais no contexto da elevada carga que é imposta ao sistema respiratório pela intensidade dos treinos (6). Por esse motivo, é essencial que sejam consultados médicos com experiência no acompanhamento e tratamento de patologia respiratória e alérgica nestes casos. Fundamental também é a realização de exames respiratórios objectivos. De acordo com a Comissão Médica do Comité Olímpico Internacional, recomenda-se a realização de testes objectivos de função respiratória e provas de provocação brônquica para documentar este diagnóstico. A sua realização identifica frequentemente atletas com asma que não referiam sintomas, embora vivessem com limitação da sua capacidade desportiva! Por outro lado, não será demais referir a importância do diagnóstico diferencial com outras patologias que podem assemelhar-se a asma, ou mesmo coexistir com a asma, nomeadamente a disfunção das cordas vocais (7). A distinção entre doenças é fundamental, porque a terapêutica é completamente diferente, e os exames auxiliam a identificar essa distinção (7).

RINITE
Rinite consiste na inflamação do revestimento da mucosa nasal e caracteriza-se pela presença de um ou mais sintomas de congestão nasal, rinorreia anterior (“pingo”) e/ou posterior, esternutos (“espirros”) e prurido (“comichão”) nasal (8). Apresenta diversas causas, sendo frequentemente multifactorial, mediada por mecanismos alérgicos e não alérgicos. Nos jovens que praticam natação deverá ser também considerada a inalação de substâncias irritativas derivadas do cloro (9).
A rinite tem uma maior prevalência em atletas de alta competição (10), sendo que em vários estudos a sua prevalência neste grupo varia entre 13.3 a 48.6% (10). Apesar de ser pouco valorizada é uma patologia que afecta frequentemente o rendimento dos atletas, nomeadamente nos meios de alta competição. Os atletas com rinite, em particular se têm obstrução nasal, referem frequentemente distúrbios do sono, sonolência diurna, e fadiga que prejudicam o seu desempenho (2). O diagnóstico e tratamento precoce permitem melhorar significativamente a qualidade de vida. Num estudo em 145 atletas após instituído tratamento para a rinite alérgica foi verificada a melhoria significativa da qualidade de vida (11). O tratamento da rinite, especialmente da obstrução nasal, deve melhorar o sono e, assim, melhorar o desempenho atlético. A redução da exposição a alergénios ou a componentes nocivos será talvez uma das tarefas mais difíceis e por vezes impossível, embora se devam implementar medidas globais na melhoria do controlo ambiental, nomeadamente o uso de adequados sistemas de ventilação em piscinas. No caso da rinite alérgica, a indução de tolerância pode ser possível através da imunoterapia específica (“vacinas anti-alérgicas”), um tratamento que permite modificar a doença.

URTICÁRIA INDUZIDA PELO EXERCÍCIO
A urticária é caracterizada pelo rápido aparecimento de pápulas na pele avermelhadas, algumas vezes esbranquiçadas na parte central, acompanhadas de prurido (“comichão”). Em alguns casos, acompanham-se de edema (“inchaço”). Esta patologia relacionada com o desporto é muito menos frequente do que as doenças referidas previamente, mas ainda com um impacto importante no desempenho e na qualidade de vida. É extremamente incomodativa e é frequentemente desencadeada além do exercício, também por estímulos físicos e ambientais, incluindo a urticária induzida pelo frio, a urticária dermográfica, a urticária solar (em desportos outdoor), e nos casos dos nadadores a urticária aquagénica (devida ao contacto com água). Podem também coexistir mais do que um tipo de urticária.

ANAFILAXIA INDUZIDA PELO EXERCÍCIO
A anafilaxia é uma reacção alérgica generalizada grave, com início rápido e que pode levar à morte. É um evento raro, imprevisível, potencialmente ameaçador da vida e a síndrome mais grave associado ao exercício. A anafilaxia pode ter várias causas, e entre 2-15% de episódios de anafilaxia são causadas por ou associadas com o exercício. Como as recidivas podem ocorrer nas mesmas condições, é fundamental um correcto diagnóstico por médicos especialistas nessa área, e a abordagem cuidada das actividades futuras relacionadas com o exercício. Os doentes devem ser instruídos a praticar desporto sempre acompanhados por outra pessoa. É necessário que o doente, a família, e os cuidadores na escola e treinadores estejam devidamente informados sobre os procedimentos a ter perante uma reacção anafiláctica e acesso a um dispositivo de administração de adrenalina.
O quadro clínico de anafilaxia inclui na grande maioria dos casos sintomas e sinais cutâneos, podendo estar associados a sinais e sintomas a nível do trato respiratório (rinite, edema laríngeo e broncospasmo), gastrointestinal (náuseas, cólica abdominal, diarreia e hemorragia intestinal) e cardiovascular (hipotensão, taquicardia e colapso vascular) (12). Os sintomas de anafilaxia induzida pelo exercício ocorrem habitualmente 30 minutos após o início do exercício físico, mas podem surgir mais tarde durante a prática, ou mesmo após o seu término (12). Pode ocorrer com qualquer tipo de actividade física, independentemente da sua intensidade, embora seja mais frequente após actividade física submáxima de curta duração, mas pode mesmo surgir com mínimos esforços, como caminhada, jardinagem, etc. O jogging foi das actividades mais reportadas, bem como o ténis e o futebol (12).
Entre 33-50% dos doentes com anafilaxia induzida pelo exercício reporta uma associação com a ingestão de alimentos até 4-6 horas antes da prática de exercício (13). No caso da anafilaxia induzida pelo exercício dependente da ingestão alimentar, os principais alimentos inicialmente identificados e reportados nas primeiras publicações foram os mariscos, mas entretanto já se identificou associação com o trigo e com vegetais.

CONCLUSÕES
Uma gestão adequada destas patologias induzidas pelo exercício depende do seu conhecimento, e de uma interacção próxima entre os próprios, a família, os médicos e os cuidadores na escola e os treinadores dos clubes desportivos que possibilite uma abordagem e tratamento adequados. Importa frisar que, embora classicamente se associe a morte súbita no desporto a causas de natureza cardiovascular, patologias de outra natureza, como é o caso da asma ou anafilaxia, podem estar envolvidas, e merecem atenção crescente e investigação adequada. Este facto, aliado à elevada prevalência destas patologias, por vezes assintomáticas, e ao forte impacto negativo que têm no desempenho dos nadadores realçam a importância de efectuar rastreios de asma/alergia a todos os nadadores. Os rastreios prévios que já levamos a cabo permitiram o diagnóstico de novo de asma e alergias em vários nadadores.
Por fim, é de salientar que os atletas olímpicos com asma têm ganho mais medalhas do que atletas saudáveis, pelo que não há motivo para evitar a prática desportiva incluindo ao mais alto nível, desde que com o acompanhamento apropriado!

Referências
1. Physical Activity Guidelines Advisory Committee report. To the Secretary of Health and Human Services. Part A: executive summary. Nutr Rev. 2009;67(2):114-20.
2. Schwartz LB, Delgado L, Craig T, Bonini S, Carlsen KH, Casale TB, et al. Exercise-induced hypersensitivity syndromes in recreational and competitive athletes: a PRACTALL consensus report (what the general practitioner should know about sports and allergy). Allergy. 2008;63(8):953-61.
3. Fitch K. An overview of asthma and airway hyper-responsiveness in Olympic athletes. Br J Sports Med. 2012;46(6):413-6.
4. Couto M, Stang J, Horta L, Stensrud T, Severo M, Mowinckel P, et al. Two distinct phenotypes of asthma in elite athletes identified by latent class analysis. J Asthma. 2015;52(9):897-904.
5. Couto M, Andrade P, Pereira M, Araújo J, Moreira P, Delgado L, et al. Effect of competitive swimming on airway inflammation: a 3-yr longitudinal study. Pediatr Allergy Immunol. 2014;25(2):193-5.
6. Couto M, Moreira A, Delgado L. Diagnosis and Treatment of asthma in athletes. Breathe 2012;8(4):287-96.
7. Couto M, Moreira A. The athlete "out of breath". Eur Ann Allergy Clin Immunol. 2016;48(2):36-45.
8. Bousquet J, Khaltaev N, Cruz AA, Denburg J, Fokkens WJ, Togias A, et al. Allergic Rhinitis and its Impact on Asthma (ARIA) 2008 update (in collaboration with the World Health Organization, GA(2)LEN and AllerGen). Allergy. 2008;63(Suppl 86):8-160.
9. Bonini S, Bonini M, Bousquet J, Brusasco V, Canonica GW, Carlsen KH, et al. Rhinitis and asthma in athletes: an ARIA document in collaboration with GA2LEN. Allergy. 2006 61(6):681-92.
10. Delgado L, Moreira A, Capão-Filipe M. Rhinitis and its impact on sports. Allergy and Clinical Immunology International. 2006;18(3):98-105.
11. Katelaris CH, Carrozzi FM, Burke TV, Byth K. Effects of intranasal budesonide on symptoms, quality of life, and performance in elite athletes with allergic rhinoconjunctivitis. Clin J Sport Med. 2002;12(5):296-300.
12. Silva D, Delgado L, Moreira A. Anafilaxia induzida pelo exercício físico. Rev Med Desportiva 2013;4(2):20-4.
13. Scherf KA, Brockow K, Biedermann T, Koehler P, Wieser H. Wheat-dependent exercise-induced anaphylaxis. Clin Exp Allergy. 2016;46(1):10-20.

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